20.11.10

Paz a 3.689.087.767.666 KM





Gostava de ter muito para contar, mas sinto-me o caos disfarçado de gente que conserva ainda uma ordem celular que me espanta.

Quando me olho, e me vejo, sou inteira. Sou o 1 presente que se desmultiplica num estilhaço interior, cada qual com o seu reflexo, cada qual diferente,
nas arestas e nos tamanhos.

Tenho cabelos que tombam e que penteio.
Tenho pele que pede sol, e olhos que se despedem das sombras.
Ouvidos que rejeitam.
Vozes que falam quase sempre certo.
É rara a vez que me engano no tom. Sai com Atitude.

A atitude é a forma mais fácil de mentir. Mas dá dinheiro e com ela se trabalha.
Com ela fazem-se conhecidos, que vão ser sempre desconhecidos. Com ela fazem-se amizades, que são enganos suaves; com ela caminha-se na estrada correcta, quando sabemos que tudo isso é uma palhaçada, porque os trilhos são tantos quanto aqueles que conseguimos ser, e pior, querer.

Fico feliz com a estabilidade dos outros, mas questiono-me por que para mim são correntes.

É difícil viver com a noção que o trabalho é a mais pesada das correntes porque é a condição primária que te impôem.

Quando nasces, fazem-te o xeque-mate. Quando nasces, fazem-te projectos de vida. Dão-te metas, dizem-te até as idades com as quais se devem atingir, e começam-te a colocar barreiras.

Um dia vais produzir, vais gerar riqueza, estás no jogo de um tabuleiro muito maior.
Não é Deus que o tem nos joelhos.

É a pobreza dos outros, o descalabro ambiental que longe de ti acontece, guerras provocadas em nome da religião, mas com o sobrenome do capitalismo, redes de droga, de tráfico e de sexo.

Mas no teu olhar, a pureza vive selvagem na convicção que o amor dos outros te transmitiu.

Não ouves, mas é de noite que os homens das obras aparecem.
Trazem tinta para o asfalto, trazem barras laterias de protecção.
Trazem câmaras, placas de sinalização e portagens.

Passa as portagens, não te esqueças.
Passa, paga, e continua a produzir.

É complicado perceber que estás sempre metido numa organização. Que te regista, transfere, carimba, quando estafado voltas para casa, e adormeces, e os homens das obras voltam.

Nem tiveste tempo para ver o telejornal da noite anterior, e já acordas com a estrada mais apertada.
Já és o culpado pelos fogos florestais, já és o culpado por não produzires, já és o culpado por não haver inovação no país, já és o culpado por não teres feito nada porque confiaste que alguém o fazia por ti.

Mas tens uma estrada à tua frente e uma portagem que nunca mais aparece. Aquela, que uma vez transposta, tem a saída esperada: a que te revela o país que tens, mas não se mostra; as pessoas a viverem no ritmo certo; as crianças a encherem os jardins; os idosos a sorrirem com dignidade de tratamento.

Receio um dia acordar e ver a estrada cortada.
Ou não...

Talvez saltasse a barreira lateral que não percebo porque ainda respeitamos.