28.3.09

a propósito do título

Mira-Céus, Mira-Céus! - chamava uma voz de peito alto, branco e majestoso, instalado no centro de uma pedra à beira mar.

Mira-Céus, Mira-Céus! É hoje vem, onde andas peixe desafortunado? - irritada a gaivota alongou o seu corpo sob a linha d'água.

E Mira-Céus nadava, num desespero ansioso, arrastando consigo corpo mal-jeitoso, cadeado pesado da sua existência.

A sua família, numerosa, era também algo temida no mundo aquático, ou não fossem estes peixes eléctricos e carnívoros, capazes de descarregar voltagens relativamente altas, para deixar as suas presas atordoadas.

Mas Mira-Céus era diferente. Dela apenas herdara os protuberantes olhos que mais pareciam suspensos na grande cabeça cúbica, e, sem nem pela carne sentia desejo, muito menos faísca saía no mais oportuno ensejo.

Ora, como em todos os contos deste género, o tal peixe era mal visto pela comunidade: "nem eléctrico, nem carnívoro, apenas com os olhos postos no céu, não sei bem o seu desígnio" .

Para espanto de todos, os anos contaram várias algas, tempo que lhe permitiu crescer com o cunho da solidão, sendo apenas excepção um peixe-gato seu amigo que protegia o pequeno Céus, dos que sabiam da sua fragilidade.

Um dia, decidiu nadar até à superfície sozinho. Nesse dia, travou amizade com uma gaivota.

Há sempre um dia de solidão que se anula a si próprio e que marca as vidas de cada um porque a memória faz-lhe vénia para acontecer.

(Mistérios da existência...)

Esta foi parte da conversa que o sol brindou já alto:

-Não me matas?
-Antes de fazeres a pergunta já o teria feito. Que me queres peixe feio?
-Quero voar.
-Assim mato-te na mesma, imbecil!
-Podes-me comer depois.
-Não dá tanto gozo. Queres voar para quê? Não te chega o oceano? (e sentando-se sob as patas laranja, semicerrou os olhos para dar início à ironia) Essa tua raça faz-me lembrar os humanos, sabes: eléctricos, disparam em todas as direcções, atordoam-se uns aos outros, porque o medo transpira-se-lhes na epiderme, e a cobiça maestra as suas intenções.
Não julgues que te levo ao céu, cabeça cúbica. Se és um peixe deficiente aprende a lidar com isso.
O mar já te chega, vai-te! -e voltando-se, num estender de asas sublime, algo o detém.

- Espera... Não meu dói o que não tenho. Claro que a cobiça faz parte desta condição imperfeita de respirar; mas daí até me doer, revoltar, ou invejar as condições de outrem, vai um passo gigante, que nos transporta para um plano existencial, o qual tenho a consciência que não tacteio.

(a gaivota parou de pé)

-É como se eu vivesse dentro de um aquário, percebes, e não no oceano, e esse plano ou fosse a tampa ou o fundo; e flutuando entre os dois limites, tenho a clara percepção que, se nem na base raspo, quanto mais voar…

(a gaivota não percebeu e por isso voltou a sentar-se).

-Por isso, não me dói o que não tenho. O que não tenho, desconheço. Posso imaginar o que seja, mas não me pertence. E mesmo imaginando, tal nunca nos magoa, porque o imaginário não existe para tal, apenas para nos fazer crer que estamos no sítio certo...e isso é bom.
O que me dói, é este "aquário". A condição. A existência. Doem-me as barbatanas. O ir em frente, e ter de voltar para trás, porque é tudo igual e não termina! Eu aceito que não termine...mas posso desejar que seja diferente, não posso?

-E preferes estar seco, caído no chão, a desesperar por água, a lutar contra o excesso de ar, a sentir as escamas perderem a cor, e a estalarem de inadequação ao meio ambiente? (pergunta a gaivota num tom que a traíu de preocupação)

Mira-Céus sorriu, e disse-lhe com os olhos tão esbugalhados que lá se podia ver as nuvens reflectidas: quantos seres conheces que caminham com essa sensação? Esse cenário não tem de ser o capítulo final de uma história. Às vezes é a própria história.

E nisto aproxima-se o peixe-gato furioso, que de tão preocupado deixa soltar uma faísca que atordoa o seu amigo.

Quando acordou, de novo no fundo do mar, envolto em algas e areias, o peixe seu amigo quis saber que raio andava ele a fazer à beira mar com o pedrador.

-Nada.

-Nada? Que nadas sei eu bem? DIZ-ME!

-Quero voar, amigo, quero voar.

-Queres morrer?

-Não! Quero voar!

-Mas vais morrer, não percebes?

-Gato, ouve-me, estas barbatanas não me merecem. Tu sabes que eu não nado bem. E tu não podes estar sempre a proteger-me. Quantas migrações já perdeste? Quantas famílias deixaste de constituir por mim? E não era esse também o teu sonho? Ter essa horda de peixinhos faiscantes a pontuarem o mar de luz, num dia de tempestade? (o peixe-gato sorriu)

-Sim, mas gosto tanto de ti...
-Eu também, mas eu quero voar.

No dia seguinte, lá estava a gaivota.

Mira-Céus, Mira-Céus! - chamava uma voz de peito alto, branco e majestoso, instalado no centro de uma pedra à beira mar. Mira-Céus, Mira-Céus! É hoje vem, onde andas peixe desafortunado? - irritada a gaivota alongou o seu corpo sob a linha d'água.

E Mira-Céus nadava, num desespero ansioso, arrastando consigo corpo mal-jeitoso, cadeado pesado da sua existência.

Finalmente chegou.

-É hoje? pergunta emocionado.

-É, pah, tem de ser hoje que as gaivotas andam em terra e não quero que me vejam. Estás preparado?

Foi então que Mira-Céus fechou os olhos, absorveu todo o oxigénio o seu pequeno corpo lhe permitiu, e, num golpe certeiro e brusco, foi arrancado da água em direcção ao céu.

Tudo o que viu e sentiu só ele sabe.
Recorda a gaivota que a sua resistência foi admirável, porque não deixou o seu corpo sacudir-se até terem atingindo uma altitude que ela própria nunca experimentara.

Depois de passarem as segundas nuvens, o seu corpo sucumbiu ao desespero e a gaivota, de peito apertado, soltou o pequeno Mira-Céus por cima da nuvem mais próxima.

Cá em baixo, um peixe-gato observou todo o voo, nas esperança de ver o seu amigo ser puxado pela gravidade, de novo até ao grande mar. Mas nada caiu do céu. Nada.

E o peixe-gato triste e revoltado, nadou em 360º graus, procurando no Céus no céu, numa ânsia eléctrica que lhe descarregou as baterias.

Quando a gaivota aterrou numa pedra perto deste, apenas lhe disse: Não caiu, gato. Não percebo o que se passou, não caiu. Desapareceu assim que o larguei.

O gato, preparando-se para o insultar, observou uma vez mais o azul. E aí viu, numa nuvem que se formou, um peixe branco imaculado, que os dois juram que sorriu.

1 comentário:

nandokas disse...

Olá,
No teu post com o vídeo lá em cima, terminas o texto com: "Se eu tivesse conhecido a gaivota que me levou o Mira Céus, talvez...", confesso que não entendi.
Agora, ao ler este teu post, então aquela frase ficou com sentido.
Bonito texto. Gosto!
Beijos e sorrisos.